ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO DE PROFISSIONAIS DA ESTRATÉGIA DE SAÚDE DA FAMÍLIA EM TERRITÓRIOS RURAIS
João Paulo Lopes da Silva
Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal da Paraíba-UFPB.
Maria do Socorro Trindade Morais
Doutorado em Educação pela Universidade Federal da Paraíba-UFPB.
RESUMO
Objetivo: Descrever as percepções dos profissionais na Estratégia de Saúde da Família sobre as potencialidade e desafios na organização da assistência em territórios rurais. Métodos: Pesquisa qualitativa, realizada através de entrevista semiestruturada em quatro municípios localizados em territórios rurais do sertão do Estado da Paraíba. Participaram 23 profissionais da Estratégia de Saúde da Família. Os dados foram analisados pelo software Atlas.ti22 e fundamentado pela Análise de Conteúdo. Resultados: Evidenciou-se que o trabalho na Atenção Primária em territórios rurais é permeado de desafios cotidianos que podem comprometer a qualidade da assistência. Como potencialidade, destacou-se a relação do vínculo entre profissional-comunidade como elo na construção do cuidado. Conclusão: O reconhecimento do território rural e de suas vulnerabilidades é fundamental para elaboração de estratégias que garantam o acesso e qualidade aos serviços de saúde para todos os cidadãos.
Descritores: Saúde da população Rural; Estratégia Saúde da Família; Organização de Serviços de Saúde
INTRODUÇÃO
A Estratégia Saúde da Família (ESF) é considerada como o modelo preferencial de organização da Atenção Primária à Saúde (APS) no Brasil, ao propor uma atenção contínua a população em determinado território, proporcionando o cuidado integral à saúde das famílias, por meio do trabalho multiprofissional1.
O acesso à Saúde é um direito humano básica e fundamental, embora no Brasil, mesmo com a expansão da Atenção Primária Saúde, existem populações que ainda tem dificuldades para acessarem a saúde, a exemplo, da população rural2. A realidade da saúde rural brasileira é diferente do que ocorre em outros países da Europa e da Ásia, tanto no que se refere à questão da organização de gestão, quanto à geográfica. Porém, apresentam semelhança no que se refere às dificuldades para assistência à saúde. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), 56% dos moradores de áreas rurais no mundo não têm acesso a serviços de saúde3,4.
A literatura sobre saúde em território rural aponta algumas limitações quando se refere ao acesso e a utilização dos serviços por essa população, como importantes barreiras, estando relacionadas principalmente aos fatores socioeconômicos, demográficos, geográficos e os limites estruturais do sistema5,6,7.
Em territórios rurais, a atuação da equipe de ESF deve considerar as especificidades e as diversas vulnerabilidades da população e do espaço em que estão inseridos. No Brasil, assim como no cenário internacional, a temática do trabalho sobre a assistência em cuidados primários a populações rurais vem sendo desenvolvida, visto que existe politicamente um desfavorecimento dessa população, o que que acarreta os piores indicadores epidemiológicos e sanitários8,9,10,11.
Os estudos sobre saúde da população em território rural, já aponta há muito tempo que essa população requer atenção mais direcionadas das políticas públicas, em especial, do Sistema Único de Saúde, devido às iniquidades em saúde existente no território. É preciso considerar as diversidades sociogeográficas e especificidades da população para elaboração de um modelo de saúde que possa contemplar as reais necessidades de cuidados da população12,13,14.
O estudo tem por objetivo descrever as percepções dos profissionais dos profissionais na Estratégia de Saúde da Família sobre as potencialidade e desafios na organização da assistência em territórios rurais.
MATERIAL E MÉTODOS
Trata-se de um estudo qualitativo, realizado em quatro municípios localizados em territórios rurais no interior do Estado da Paraíba: Juru, Manaíra, Princesa Isabel e Tavares.
O trabalho de campo ocorreu entre maio e julho de 2022 por meio de entrevistas gravadas a partir de um instrumento semiestruturado. Em cada município foi selecionada uma equipe da ESF que estivesse completa e atuasse em áreas rurais. Foram entrevistadas vinte e três profissionais, sendo: Enfermeiros (4), Médicos (4), Cirurgiões Dentistas (4), Técnicos em Enfermagem (3), Auxiliar em Saúde Bucal (4) e Agentes Comunitários de Saúde (4).
Os discursos foram gravados e transcritos, sendo organizadas por meio do Software Atlas.ti22® através de categorias temáticas. Para garantir o sigilo e os princípios éticos, optou-se por substituir a categoria profissional por um tipo de vegetação típica do ambiente rural sertanejo. Assim, os sujeitos foram identificados como: Enfermeiras (Mandacaru); Médicos (Aroeira); Cirurgião-Dentista (Baraúna); Técnico em Enfermagem (Macambira); Auxiliar de Saúde Bucal (Juazeiro); Agente Comunitário de Saúde (Xique-xique). Após categorização, os discursos foram fundamentados a partir da Análise de Conteúdo de Bardin15.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Paraíba-CEP-CCS/UFPB, CAAE: 5660212.5.0000.4188 e Parecer 5.320.516, com anuência dos municípios, entrevista autorizada pelos participantes e preservação de anonimato nas análises.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Participaram do estudo vinte e três profissionais de saúde da Estratégia de Saúde da Família de quatro munícipios localizados em territórios rurais no sertão do Estado da Paraíba. Quanto à tipologia de classificação rural-urbana do IBGE16, os munícipios os municípios de Juru, Manaíra e Tavares são classificados como rural adjacente. Já o Município de Princesa Isabel se classifica como intermediário adjacente.
O processo de análise dos discursos possibilitou a criação de duas categorias temáticas: “Desafios na organização do trabalho da Estratégia de Saúde da Família rural” e “Potencialidades da Estratégia de Saúde da Família no cuidado a população em Território Rural”. Essas categorias se encontram discutidas a seguir:
Desafios na organização do trabalho da Estratégia de Saúde da Família rural
O ambiente rural apresenta diversas peculiaridades na organização da assistência à saúde, devido características particulares desses territórios que enrijecem as relações de cuidado e resultam em experiências assistenciais frágeis e com baixa ou insuficiente resolubilidade17. Os profissionais da Atenção Primária à Saúde, a partir do contexto em que estão inseridos, devem ser capazes de planejar, organizar, desenvolver e avaliar ações que respondam às necessidades da comunidade.
Nesse contexto, os participantes foram convidados a relatar os desafios enfrentados no cotidiano de seu trabalho na ESF na área rural. Os discursos emergiram em quatros desafios principais: “Acesso sociogeográfico aos cuidados em saúde”, “Acesso à infraestrutura e aos recursos materiais”, “Processo de comunicação com gestão municipal” e “Rotatividade profissional”.
O acesso sociogeográfico aos cuidados em saúde foi o desafio mais apontado pelos profissionais, considerando as dificuldades na mobilidade de profissionais e usuários para a efetivação do cuidado em saúde. O acesso à saúde é uma importante dimensão das desigualdades entre áreas urbanas e rurais. As longas distâncias percorridas pela população entre seu local de moradia para área urbana em busca de serviços de saúde ou mesmo de alguns usuários para a UBS são expressivas, e os tempos de deslocamento não são fixos.
Os municípios estudados apresentam contextos intrínsecos em relação ao tipo de transporte, tempo e custo de deslocamento. A distância entre a zona urbana e as sedes das UBS são variáveis. O tempo de deslocamento da equipe pode durar de uma até duas horas, entre a zona urbana e a sede da UBS na área rural ou para as unidades âncoras, a depender de fatores climáticos, como a chuva e das condições de deslocamento relacionados as condições da estrada. Ressalta-se que, em dias chuvosos, algumas equipes não conseguem acessar a unidade devido às péssimas condições das estradas, conforme narrativa a seguir.
A dificuldade maior é na época das chuvas. A estrada não dá passagem nem para o paciente e para nós. Tem vezes que perdemos entre dois a três atendimentos naquele local. É estrada de terra, tem riacho, tem o barro; a equipe não consegue subir e voltar. Se chover, a gente vai até o local que dá, se não der, tem que retornar, e eles também não conseguem vir. (Macambira 1)
Essa realidade é vivida na maioria dos territórios rurais no Brasil devido as escassas as iniciativas de políticas públicas que consideram as especificidades de contextos desta natureza e de planejamento local, que considere as especificidades das regiões. É notório que as coordenações municipais organizam a assistência da Atenção Primária de forma comparativa entre as unidades presentes na área urbana e as unidades das áreas rurais, porém, é importante que se considere suas especificidades no processo de planejamento.
Os profissionais ainda apontaram a dificuldade de deslocamento também de alguns usuários até as UBS decorrente de distâncias geográficas, seja para realização de consultas na UBS referência ou para realização de exames complementares que, na maioria das vezes, são realizadas na área urbana.
O acesso da população ao posto é uma dificuldade por ser um pouco distante. Então, tem paciente que passa mais de uma hora para poder chegar ao postinho. A acessibilidade é um pouco complicada. (Aroeira 2)
A dificuldade mesmo é o deslocamento porque, como são pessoas muito distribuídas, a gente trabalha em dois povoados, mas ainda tem muito sítio ao redor, distante, e muitos pacientes deixam de ter atendimento por causa do deslocamento. Então, seria o caso de aumentar o número de unidades, de melhorar o acesso e ter transportes disponíveis para esses pacientes. (Baraúna 3)
Os discursos sinalizam a presença das iniquidades em saúde em territórios rurais e que esta, não está decorre apenas das longas distâncias geográficas, mas de aspectos mais amplos, como a determinação social, as desigualdades de poder aquisitivo e de posse de meios de transporte, que se sobrepõem às barreiras de acesso aos serviços de saúde18.
Embora os municípios estudados apresentem uma boa cobertura populacional, a realidade para conseguir a continuidade do cuidado à população no território é um enorme desafio para as equipes da ESF, visto que o déficit de acesso tanto da população para UBS quanto dos profissionais para o deslocamento até os postos âncoras, ou mesmo para uma visita domiciliar, ainda deixa uma lacuna nesse processo. A realidade brasileira é que uma considerável maioria de gestores municipais ainda não garantem de forma efetiva um transporte exclusivo para deslocamento dessas equipes.
No tocante ao acesso da população a serviços de média e alta complexidade, a ausência de transporte é citada como uma barreira importante. Muitas vezes, os custos para realizar o deslocamento são assumidos, de forma direta, pelos usuários, comprometendo o parco orçamento familiar e configurando um gasto catastrófico. No Brasil existe, desde 1999, o programa: “Tratamento Fora de Domicílio”, que garante aos pacientes tratados pelo SUS ajuda de custo e deslocamento para consultas e tratamentos agendados pelo SUS em outra região, no entanto são inúmeras as fragilidades dessa política19.
Estudos de revisão sinalizam que barreiras de acesso aos serviços de saúde podem gerar consequências aos cuidados em saúde, tais como: usuário tendo que reiniciar, desistir ou adiar sua busca por cuidados de saúde; agravamento na sua condição de saúde; busca de cuidados em hospital, independentemente do tipo da demanda, dentre outros prejuízos20,21,22.
Uma experiência positiva a destacar nessa pesquisa, relativa a organização de transporte fornecido pela gestão para a população está na disponibilização de uma ambulância com motorista em povoados polos, durante as 24h, todos os dias da semana, para serem acionados, em caso de emergência. Essa ação é realizada em dois dos municipios pesquisados. Foi uma estratégia viável e que tem diminuído o sofrimento da população, especialmente, quando se refere ao deslocamento de emergência.
O segundo desafio apontado foi o “Acesso a infraestrutura e aos recursos materiais”. Duas equipes apontaram que as estruturas físicas de suas UBS eram inadequadas por não comportar uma quatidade de salas para atendimentos que garantisse que todos os profissionais pudessem realizar seu atendimento, assim como, eram pequenas e sem ventilação adequada. Além disso, destacou-se também, a falta de equipamento adequados e o quantitativo de materiais de insumos para realização de procedimentos eram insuficientes. Foi citado também que a maioria das unidades de apoio, postos âncoras, são pequenas; muitas estão sucateadas e não apresentam estrutura física adequada à realização do atendimento, especialmente, quando se refereo atendimento de saúde bucal.
Uma dificuldade importante que deveria ser mudada seria a existência de mais recursos para o pessoal daquela área, daquela UBS, para que aquelas pessoas não precisassem se deslocar para outra cidade. É muito distante e difícil acesso. A UBS deveria ter mais recursos. (Juazeiro 3)
Eu acho que seria mais essa questão de melhorias na infraestrutura, porque eu vejo bastante a diferença da infraestrutura de zonas rurais e das zonas urbanas. Geralmente, a zona rural é mais abandonada, os instrumentais são mais antigos e tudo mais. (Baraúna 3)
A narrativa do participante Juazeiro 3 discorre sobre a importância de investir recursos nas unidades remotas que apresentam um difícil acesso para deslocamento dos pacientes. Essa ideia é endossada pelo participante Baraúna 3, ao citar a importância da melhoria da infraestrutura da UBS. Considerando a realidade exposta, observa-se que a questão do trabalho da equipe de saúde bucal ainda é mais crítica, em relação aos demais profissionais da ESF, porque, para realização da maioria dos seus procedimentos, a equipe demanda de sala fixa, estruturada, com equipamentos e instrumentais em condições de uso.
Outraquestão apontada pelos participantes foi a falta de recursos materiais na UBS, como instrumentais na sala de curativo, medicamentos e outros insumos para execução de alguns procedimentos, dificultando, assim, a assistência integral à população.
Falta instrumental na sala de curativo. A gente faz pedido, mas vir nunca vem como é pedido. A gente pede mais para documentar. Alguns medicamentos faltam porque não vêm em abundância e tem muita saída. (Macambira 3)
O terceiro desafio apontado consite no “Processo de comunicação com a gestão munícipal”. A realidade de uma maioria dos profissionais apontou que existe uma lacuna entre o processo decomunicação da gesão da Atenção básica e os profissionais da ESF que pode dificultar o planejamento e organização do processo de trabalho, conforme ilustrado nas narrativas abaixo:
A maior dificuldade que a gente tem é gestão. Por que gestão? Porque a gestão, ao longo do tempo, preparou duas unidades de saúde com estrutura precária e não preparou insumos, equipamentos adequados. De uma forma geral, a Estratégia de Saúde da Família é muito, muito aquém do que deveria ser. Tem muita coisa que precisa ser melhorada e muita coisa que precisa ser incentivada. (Aroeira 3)
Dificuldades a gente tem decorrentes da própria gestão de saúde. Por vezes, é a falta de exames, falta de medicação para ceder para o paciente, que são os insumos de maneira geral. Existe essa falta, né? E isso acaba sendo generalizado. (Aroeira 2)
Nosso PSF é uma unidade bem estruturada, porém a sala de odontologia não tem condições de atendimento por ser pequena, por terem deixado tudo quebrado, dizem que foi na outra gestão. Isso dificulta, porque, se fosse a mesma qualidade que tem aqui na urbana, o serviço prestado seria excelente. (Baraúna 1)
Essa situação aponta que a disponibilidade de recursos para o deslocamento e de infraestruturas das unidades define o tipo de serviço a que as populações rurais terão acesso.
Embora o direito à saúde envolva o acesso a todo e qualquer serviço que se faça necessário para o cuidado, percebe-se que o acesso à saúde pela população rural não é definido pelas necessidades das pessoas, mas pela possibilidade que têm para se deslocar e da oferta de equipamentos e infraestrutura das unidades de saúde.
Nesse sentido, discutir o direito à saúde das populações rurais exige, necessariamente, mapear as (im)possibilidades de deslocamento entre seus territórios e a cidade, as necessidades materiais e de trabalho das equipes, além das especificidades que cada área possui.
A narrativa dos participantes desvela a realidade intrínseca em vários municípios brasileiros, sobre o processo de gerenciamento em saúde, especialmente, na Atenção Básica. Muitos gestores entendem que fazer o papel de ditador de normas, fiscalizador de protocolos e prescritor do trabalho dos profissionais é o suficiente para garantir que o cuidado se realize nas UBS.
Um participante relata que falta conhecimento da gestão sobre o que é o trabalho da Atenção Básica e sobre a importância do reconhecimento do trabalho dos profissionais, conforme ilustrado na fala a seguir.
Outra coisa importante é o reconhecimento profissional. Temos muita responsabilidade na Atenção Básica e muitas atribuições. Além disso, somos mal remunerados. Falta entendimento também do que é Atenção Básica, Estratégia de Saúde da Família. A gestão não sabe o que é isso, então fica perpetuando aquele atendimento ambulatorial, parecendo um pronto atendimento para gestão. (Aroeira 3)
O papel de um gerente na saúde deve ser democrático e contribuir para o planejamento, o aprimoramento e a qualificação do processo de trabalho das equipes, fortalecendo a atenção à saúde prestada pelos profissionais das equipes à população adscrita, por meio de função técnico-gerencial23. Porém, para que realmente ocorra um processo de gestão e de tomada de decisão, é necessário que os profissionais que estão inseridos nos serviços sejam reconhecidos e vistos como atores importantes nesse processo.
O quarto desafio referido foi a “Rotatividade Profissional”. A rotatividade traz prejuizos consideráveis para a gestão e pode comprometer as relações das equipes com a população,.
Existe uma rotatividade grande de profissionais. Não para médico, nem enfermeiro. É um ponto negativo isso porque, com essa rotatividade de profissionais, acabam-se perdendo os vínculos. O único profissional fixo é apenas o ACS. (Xique-xique 1)
A provisão e fixação de profissionais em territórios rurais é um grande desafio para gestão, especialmente, quando se trata de profissionais médicos, em áreas rurais remotas. O estudo de Fausto, Giovanella, Lima, Cabral e Seidl20 mostrou que a provisão da força de trabalho, especialmente, médicos, nas áreas mais remotas, continua sendo um problema sem solução. Ainda existe uma dificuldade na contratação de médicos pela gestão municipal devido à alta remuneração que precisa ser paga para atrair o profissional, o que não garante a sua fixação. De acordo com Andrade, Pinto, Soares e Silva24, mesmo com a ampliação do Programa Mais Médico, essa instabilidade ainda continua porque, no início, vários médicos aderem ao programa e depois pedem desligamento, deixando o território sem assistência.
Ressalta-se que, embora municípios rurais adjacentes possuam uma realidade diferente dos rurais remotos, no sentido de distanciamento sociogeográfico, torna-se importante a ampliação do olhar sobre a diversidade do território rural brasileiro, considerando suas realidades distintas, culturais e organizacionais.
Potencialidades da Estratégia de Saúde da Família no cuidado a população em Território Rural
O trabalho dos profisionais da ESF em territórios rurais é desafiador devidos as diversas barreiras socioespaciais e estruturais enfrentadas para garantir uma assistência de qualidade e amenizar as desigualdades no acesso a saúde dessa população. O trabalho na APS envolve a estruturação e a organização das práticas de saúde a partir de saberes construídos de modo coletivo. Quando se fala na construção do cuidado em saúde para populações rurais é preciso que esses saberes estejam estruturados a partir das especificidades locais.
Os discursos dos profissionais a respeito das pontecialidades no trabalho em ESF rural foram enfatizadas pelo “Vínculo profissional-usuário” e pelo “Trabalho em equipe”, como forma de melhorar o processo de trabalho em saúde e dinamizar as relações na construção do cuidado.
O “Vínculo profissional-usuário” foi citado como uma forma de diminuir as distâncias geográficas e afetivas dos profssionais com os usuários, além de ser um dispositivo essencial para o sucesso das ações de reorganização e resolutividade do processo de trabalho na ESF, especialmente, nos territórios rurais.
Os profissionais discorreram sobre sua relação com a maioria dos usuários como a presença de afeto e empatia. Alguns profissionais destacam que o acolhimento feito pela população aos profissionais, diminuem as barreiras e estimulam a realização do seu trabalho.
A comunidade é extremamente acolhedora. Então, quando a gente quer fazer alguma coisa, o pessoal acolhe bem. (Aroeira 3)
Acredito que existe um vínculo entre nós, profissionais, e a população. Na zona rural, apesar de ter também algumas coisas, há uma aceitação muito melhor. Eles são acolhedores. Outra coisa é por ser uma população menor, automaticamente, a gente tem uma disponibilidade de atendimento de um leque maior para essas pessoas, do que para a zona urbana. (Baraúna 2)
O vínculo constitui uma das diretrizes operacionais da ESF e promove o fortalecimento das ações intersetoriais. Ele representa uma conexão entre os conceitos de humanização, responsabilização, acolhimento e integralidade. Para o estabelecimento das bases dessa relação vincular, é imprescindível a confiança, o respeito, a atenção, a escuta e um olhar diferenciado dos profissionais para os usuários e vice-versa25.
O estabelecimento de vínculo entre os profissionais da ESF e usuários é visto como uma forma terapêutica que proporciona bem-estar na convivência e no trabalho dos profissionais, garantindo a continuidade do cuidado e a corresponsabilização pelo processo de saúde da população23.
Existem alguns elementos que podem contribuir com potencialização do vínculo, como as visitas domiciliares, o tempo de atuação dos profissionais nas USF, o número de consultas realizadas e o desenvolvimento de ações intersetoriais22.
Em territórios rurais, o vínculo entre profissional e usuário é um instrumento extremamente importante, visto que permite ao profissional realizar um reconhecimento das condições de vida da população do seu território, da situação de saúde, do acesso às ações e aos serviços de saúde, da cultura e da própria subjetividade ali existente, que auxiliará o profissional na construção de intervenções e na reorganização do seu processo de trabalho12.
Os profissionais apontaram também que o “Trabalho em equipe” é uma ação importante para a construção do trabalho na ESF, pois congregar as várias visões dos profissionais por um bem comum, que é a assistencial multiprofissional aos usuários da saúde.
O trabalho em equipe, querendo ou não, conta muito para ajudar a gente em todos os sentidos. Quando a gente tem uma equipe unida, a gente consegue ir longe. (Mandacaru 2)
A relação é excelente, já pensando naquela questão de bater meta, também. Porque, por exemplo, tem a consulta com o médico, aí o médico já envia para a consulta odontológica, já para conseguirmos atender aquela meta. Então, a relação é bem harmoniosa entre a equipe. Sempre existe uma boa comunicação. (Aroeira 4)
As narrativas trazem a importância do trabalho em equipe, o qual, quando realizado de forma multiprofissional, pode ajudar a suprir a demanda da comunidade reduzindo danos e agravos, além de promover saúde. O trabalho em equipe ainda possibilita a pactuação de compromissos e permite aos trabalhadores espaços de reflexão sobre a eficácia de sua atuação.
O trabalho em equipe é uma característica essencial na APS, sendo reafirmada a importância dessa prática para desenvolver ações que viabilizem os princípios e as diretrizes do SUS, permitindo que a integralidade e a universalidade sejam garantidas na prática diária20,23.
O trabalho em equipe deve ser constituído pela interação dos trabalhadores, sem que haja individualização do trabalho e compartimentalização das atividades. A comunicação é fundamental, visto que, quando não ocorre, pode impactar diretamente a fragmentação do cuidado e a limitação do acesso do usuário no serviço de saúde18.
Embora os participantes tenham apontado o trabalho em equipe como um potencial no trabalho da ESF em área rural, observou-se que essa realidade não ocorre em todas as equipes pesquisadas e que ainda existe uma fragmentação no trabalho, seja por divisão de categoria profissional seja por falta de planejamento conjunto.
Essa lacuna no trabalho das equipes de ESF ainda é algo que precisa ser trabalhado e superado, considerando que, quando ocorre realmente um trabalho interprofissional, os benefícios dessa ação potencializam o processo de trabalho da equipe, promovendo qualidade na assistência e satisfação profissional e do usuário.
CONCLUSÃO
Os resultados evidenciaram que o trabalho na Estratégia de Saúde da Família em áreas rurais é permeados de desafios que podem comprometer a produção de cuidados nesses territórios. A questãos do acesso sociogeográfico da população aos serviços de saúde ainda é uma grande lacuna na organização da assistência. Outros desafios apontados foram a infraestruturas das unidades precárias, falta de recursos materiais, dificuldade no processo de comunicação com a gestão e rotatividade profissional.
Entre as potencialidade destacadas apontou-se o o vínculo profissional e comunidade e o trabalho em equipe, como importantes fatores que potencializam o processo de trabalho, promovendo um planejamento de qualidade para a assistência em saúde.
Embora os resultados tragam a realidade de municípios de apenas um estado brasileiro, ele retrata a realidade vivenciada em diversas equipes de ESF rurais de municípios adjacentes no Brasil. Assim, os resultados expostos, podem subsidiar discussões entre pesquisadores, gestores e profissionais da saúde, a fim de identificar as possibilidades e limitações para o desenvolvimento do trabalho das equipes na Atenção Primária, como no fortalecimento de politicas públicas que contemplem a organização da assistência à saúde da população nesses territórios.
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